Nunca uma cidade me deixou tantos sentimentos contraditórios como Varanasi, na Índia. Tão depressa queria lá ficar para sempre como pouco depois lhe queria atear fogo. A sério, aquela cidade deixa uma pessoa doida.
Imaginem um milhão e trezentas mil almas compactadas numa cidade pouco maior que Coimbra. Juntem-lhe uma pitada de alguns milhares de vacas à solta, para cima de muitos cães vadios, uma dose considerável de cabras e milhares e milhares de peregrinos que afluem à cidade diariamente. Eu sei que já se perderam nas contas mas já deve dar para ter uma pequena ideia do que é Varanasi, a cidade mais sagrada e mais desejada da Índia. A cidade onde qualquer Hindu sonha morrer porque morrer e ser cremado em Varanasi significa conseguir o moksha (nirvana), a tão almejada libertação do ciclo de reencarnação.
O maior e mais concorrido de todos os burning ghats é o Manikarnika Ghat. E este é o lugar mais auspicioso para um Hindu ser cremado. Não admira por isso que 300 a 400 corpos sejam lá cremados por dia, noite e dia sem interrupção há já centenas de anos. Aliás, a pequena fogueira onde se acende a tocha que depois ateará fogo ao corpo, diz-se, que está acesa continuamente há 3000 anos. Estive ao pé dela e o guardião da chama (só os membros de uma determinada família podem fazer este trabalho) perguntou se eu queria um risco de cinza da tal chama na testa para dar sorte… mas eu disse-lhe que se calhar estava bem assim e que ficava para uma próxima…
Já tínhamos visto o Manikarnika de barco a partir do Ganges mas o que queríamos mesmo era ver de mais perto toda a cerimónia de cremação. Mal chegámos ao ghat um rapaz aproximou-se e alertou-nos que não podíamos descer mais sem que fossemos acompanhados por um hindu e que, claro, ele teria todo o gosto em ir connosco. Sabíamos que ele estava a exagerar e que obviamente quereria dinheiro no fim mas, bem vistas as coisas, era uma boa forma de termos acesso a informação de um local e de nos conseguirmos aproximar sem mais problemas.
Apenas exigiu uma condição: não podíamos tirar fotografias na zona de cremação. Pareceu-nos justo e cumprimos. Também não gostaria que uns estranhos se abeirassem de um funeral de um familiar meu e desatassem a tirar fotos. Há no entanto muita gente que opta por não respeitar o pedido e não faltam fotos a circular na internet.
Este é o momento em que podem fechar a página e gentilmente colocar “gosto” no link do Facebook e assim evitar ler a descrição gráfica que se segue.
Pronto, está bem, leiam lá… Todo o processo de cremação é realmente impressionante e estranhamente silencioso. Não há gritos e não há lágrimas. Aliás, as mulheres (com exclusão das turistas) não podem assistir à cremação por, supostamente, serem mais dadas à emoção e porque na tradição Hindu o funeral dever mostrar respeito e não tristeza. Para que as mulheres da família tenham acesso a uma “visão” de como correu o funeral é muitas vezes contratado um fotógrafo da morte. Ao longo das ruelas que desaguam no Manikarnika Ghat há um número sem fim destes fotógrafos com o seu trabalho exposto nas montras. É mais ou menos como as montras com fotos de noivas e comunhões em Portugal mas com pessoas mortas.
Tudo começa com a chegada do corpo, todo enrolado em panos, pratas e papelotes laranja, transportado numa espécie de padiola de bambu que é depois mergulhada durante alguns segundos no rio Ganges. O corpo é depois retirado e deixado a marinar e secar nas escadas durante umas duas horas. É um momento um pouco estranho porque o corpo fica ali sozinho com cabras, vacas e cães a passarem por cima. Quando já está no ponto, os familiares (facilmente reconhecíveis por estarem de branco e com a cabeça rapada) levam a padiola para o nível de escadas a que a sua casta corresponde (são quatro níveis: a zona dos Shudras que são os trabalhadores de mais baixo nível; dos Vaisyas, mercadores e donos de terras; dos Khasatryas, que são os militares e, finalmente, dos Brahamins, a casta dos religiosos). A partir daí, e porque os Hindus acreditam que a morte é contagiosa, o corpo passa a ser tocado apenas pelos Dom, uma subcasta dos “intocáveis ou sem casta”. Diz-se que o trabalho e a vida dos Dom é tão dura que quando uma criança Dom nasce chora-se e quando um Dom morre celebra-se porque finalmente terminou a sua triste sina.
Nesta fase, a madeira começa a ser empilhada em volta e sobre o corpo. São precisos cerca de 300 Quilos de madeira e 3 ou 4 horas para queimar um corpo humano. Os mais ricos usam madeira de sândalo mas os mais pobres normalmente só conseguem pagar madeira de mango ou nem isso e o corpo é deitado diretamente ao rio. São também deitadas sobre o corpo especiarias e temperos incenso e sândalo em pó para que não se sinta o cheiro característico a queimado. E a verdade é que resulta e mesmo e com uma serie de corpos a arder à nossa volta não cheirava a nada para além do normal cheiro a lenha a arder. Finalmente, o corpo é barrado com nacos de manteiga. Sim, manteiga. Juro. Diz que é para arder melhor especialmente quando os corpos são magros. E, finalmente, o filho mais velho ou, caso não exista, o familiar masculino mais velho, deita fogo à pira com um pedaço de madeira que acendeu na tal fogueira ancestral. Segue-se uma fase algo macabra em que os Dom de vez em quando vão batendo no corpo com um pau para irem partindo os ossos mais duros e o crânio, caso este não expluda espontaneamente. Diz-se que a alma sai do corpo apenas quando o crânio explode e por isso é importante assegurarem-se disso.
Quando o processo de queima termina, as cinzas e restos do corpo que não queimaram são lançados ao Ganges. Como o corpo tem de ser queimado com o ouro que estava a usar quando morreu, no caso de o ter, as cinzas antes de serem atiradas ao rio são passadas por um crivo para que os restos de ouro sejam recuperados.
Os Indianos são um povo muito prático e, para resolver o problema dos pedaços de corpos não completamente queimados a vaguear no rio, soltaram umas tartarugas gigantes que se encarregam de comer esses restos. Alguns ossos no entanto regressam à margem e veem-se cães a completar o trabalho das tartarugas. Não é aliás incomum verem-se corpos a boiar no Ganges. Um casal francês que conhecemos em Varanasi contou-nos, assombrado, que viu o corpo de uma criança no rio enquanto passeavam de barco. O que faz de facto sentido pois as crianças até aos dois anos e quatro meses, tal como os homens Santo, as pessoas que morreram com uma picada de cobra e as grávidas, não são cremadas mas sim atiradas diretamente ao Ganges atadas a umas lajes de pedra.
Mark Twain, que também visitou Varanasi, dizia que os indianos respeitam todas as formas de vida menos a vida humana. Não querendo contradizer tão respeitável figura, acho simplesmente que na Índia têm uma relação mais frontal com a morte do que nós ocidentais que tendemos a tratar o tema morte com pinças e eufemismos. Mesmo o tom mais leve com que falo deste assunto pesado pode ser facilmente mal interpretado. Os indianos sabem que a morte, pela sua democrática inevitabilidade, relembra-nos a preciosidade que é a vida. E a vida não é para levar muito a sério.
Para quem aguentou a descrição até ao fim, parabéns. São uns duros ???? Sigam-nos também no instagram mundomagno