O primeiro passo era saltar pela janela da casa de banho para o primeiro telhado, metro e meio abaixo da janela. Era preciso agarrar a umbreira da janela e deixar descer o corpo devagarinho, em modo ninja, para não partir nenhuma telha e não fazer barulho. Depois, era preciso caminhar com cuidado ao longo do telhado até à cumeeira, a zona onde as duas águas do telhado se encontravam.
A descida até ao segundo telhado, da casa ao lado, era a secção mais perigosa. Escorregar ali significava uma queda de uma altura de 3 andares. Finalmente, chegava-se ao sítio desejado, um telhado que tinha umas vistas fantásticas e um pequeno murete. Bem no alto porque, como diz Felix Baumgartner, “é preciso ir muito alto para vermos quão pequenos somos”. Era aí que mergulhava nos livros criteriosamente escolhidos na Calouste Gulbenkian lá da terra e delineava estratégias para conquistar o mundo como fotógrafa de aventura para a National Geographic.
Spoiler alert: ainda não aconteceu. Tinha 10 anos de idade mas um fascínio pelo “ir além do limite” bem maior do que aquilo que o meu corpo franzino podia aparentemente comportar.
Esta necessidade visceral de aventura e a vertigem pelo abismo já nasceram comigo. Não há nada de construído aqui. Não foram (bem pelo contrário) cultivados ou sequer tolerados no meu meio familiar.
E eu, pequenina e magricela, só sonhava com o dia em que fosse independente o suficiente para poder viajar para os sítios mais inóspitos do mundo, tornar-me paraquedista, mergulhar com tubarões, escalar e esquiar montanhas e pilotar aviões (raios, ainda me falta esta última mas é preciso manter alguns sonhos por realizar sob pena de o tédio tomar conta de nós).
O que me motivava, e motiva, não é a sensação de adrenalina de per si, como muita gente pensa, mas sim a sensação de empoderamento e liberdade que vem com o ir para além dos nossos limites.
O pequeno magnífico está a ser criado de uma forma muito diferente daquela com que eu fui criada. O Magno será o que quiser. Não terá de gostar de saltar de aviões ou escalar montanhas como a mãe. Mas quero muito que ele seja apaixonado por alguma coisa.
Porque a aventura não tem só a ver com o testar os nossos limites físicos e mentais, a aventura é um estado de espírito, é um instinto que nos leva a ver para além da próxima curva e que tanto serve para resistir a uma tempestade na montanha como a uma tempestade na vida. Tanto serve para manter a calma e reagir se o paraquedas principal não abrir como, ainda, para manter a calma e reagir quando um dia tiver de lidar com problemas nas três profissões que ele diz que vai ter: astronauta, piloto de aviões e Bob o construtor.
Por isso aqui vão alguns dos caminhos que tenho seguido para educar uma criança aventureira. Sintam-se livres para dar outros para a troca:
1- Começar cedo;
O Magno começou a esquiar e a escalar com 2 anos #nottobrag. As caminhadas pela média montanha e mais tarde alta montanha começaram ainda antes disso. Para ele, estar a 3000 metros ou escalar uma parede de 20 metros é algo normal. Nunca o vi ter medo. Porque tudo isto faz parte daquilo que é a sua normalidade. Começar cedo é o segredo. Com os anos o medo tende a instalar-se. A influência de uma sociedade tendencialmente avessa à diferença não perdoa.
2- Motivação e recompensa;
Quando fazemos ou tentamos arduamente fazer algo de extraordinário a recompensa chega na forma de uma tremenda sensação de conquista, realização e plenitude. Ele já sente isso. Mas por vezes a motivação extra vem na forma da promessa de uma gaufre quentinha em Chamonix se ele conseguir fazer os 10 Km de caminhada ou uma caça ao tesouro na floresta se estiver atento às aulas de ski.
3- Acampar;
Há qualquer coisa de mágico e primitivo quando se passa a noite fora de quatro paredes. Se lhe fosse a fazer a vontade vivíamos uma vida nómada na caravana quais gipsy kings dos tempos modernos. Passamos quase todos os fins de semana na nossa autocaravana em modo campismo selvagem. Mas mesmo antes de termos o conforto de uma autocaravana o Magno já acampava e dormia connosco em condições bastante mais precárias.
4- Livros que inspirem;
O Magno ainda não lê sozinho. Mas espero que os livros que marcaram a minha infância também deixem uma pegada na dele. Livros como Huckleberry Finn, o Senhor dos Anéis, o Hobbit ou as Aventuras dos Cinco são o equivalente dos aventureiros ao livro de Pantagruel para os cozinheiros.
5- Falar-lhes sobre o risco;
Muita gente acha que é um risco levar uma criança pequena para África ou para caminhadas em alta montanha. Normalmente pessoas que não me conhecem. Pessoas que confundem aventura com risco tout court. Mas na realidade, ter um alto sentido de aventura ensina-nos sobre o risco. Sobre quando algo é apropriado e quando não é. Sobre quando se deve deixar para outro dia e que, aquilo que pode parecer um risco para quem não percebe do assunto, tem de facto muito cálculo por trás.
6. Viajar;
Por viajar entenda-se quer uma viagem à Namíbia ou ao castelo da aldeia ao lado. Viajar não se mede exatamente em quilómetros calcorreados mas mais no número de “uaus” exclamados, em novos insetos descobertos, em buracos nos sapatos e remendos nos joelhos, nos pequenos “tesouros” de pedras, pinhas e paus saqueados ou em bochechas rosadas com “blush” de brincadeiras na rua ao sol ou ao frio.
O mundo precisa de mais crianças feitas de sonhos, de pés, cara e mãos sujas, criadas sem amarras, educadas para a aventura. Crianças que não tenham medo de andar pelos telhados da vida. Crianças.